Por: Jessica Machado Martins
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) do Brasil foi instituída em 2012 e teve como objetivo promover o esclarecimento e a re-presentificação
do ‘passado’ enterrado pela anistia. A CNV busca então promover o
esclarecimento público das violações dos direitos humanos cometidas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de
outubro de 1988.
A criação da Comissão Nacional da
Verdade assegurará o resgate da memória e da verdade sobre as graves violações
de direitos humanos ocorridas no período anteriormente mencionado [1946-1988],
contribuindo para o preenchimento das lacunas existentes na história de nosso
país em relação a esse período e, ao mesmo tempo, para o fortalecimento dos
valores democráticos.
(Mensagem de 12 de maio de 2010 do
presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, ao Congresso Nacional,
encaminhando o projeto de lei de criação da Comissão Nacional da Verdade).
Embora tenha sido instituída em
2012, segundo Montolli (2013) a origem da CNV data de 2009 por ocasião do
lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos que aconteceu em 21 de
dezembro do mesmo ano. Entre suas diversas metas, estabeleceu-se a criação de uma
comissão para resgatar informações relativas à ditadura militar. Sabe-se que
não foram poucas as tentativas de investigação das práticas autoritárias e das
violações de direitos humanos, uma das iniciativas que teve grande destaque foi
o livro produzido em 1985 com o título “Brasil: Nunca Mais”, iniciativa que
surgiu do Conselho Mundial de Igrejas e da arquidiocese de São Paulo, que
pesquisaram processos do Superior Tribunal Militar.
Embora a CNV tenha como objetivo o
esclarecimento, segundo Montolli (2013), a lei que institui a comissão não
atende os parâmetros internacionais tais como: independência do Estado e a investigação
penal. Ainda que a CNV resgate informações sobre as violações de direitos
humanos, segundo a lei que a instituiu, não consiste em finalidade da Comissão
assumir caráter jurídico “§ 3º As atividades da Comissão Nacional da Verdade
não terão caráter jurisdicional ou persecutório. ” (Diário Oficial da União Nº
135, sexta-feira, 13 de julho de 2012).
A sentença da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, prolatada em 24 de novembro de 2010, condenou o Brasil por
violações dos direitos humanos previstos na Convenção Americana de Direitos
Humanos, devido aos acontecimentos no episódio conhecido como Guerrilha do
Araguaia. Uma das mais importantes determinações da Corte é o dever de o Brasil
conduzir eficazmente a investigação penal para esclarecer as responsabilidades
pelos desaparecimentos forçados de 70 guerrilheiros, e impor as respectivas
sanções penais. Para Corte, a lei de anistia não pode ser considerada um
obstáculo no cumprimento deste dever. (MONTOLLI, 2013, p.22)
Historicamente golpes, guerras e
revoluções constituem momentos traumáticos na história das sociedades, aqueles
que saem vencedores desses processos mobilizam esforços para reescrever a
história. Nesse contexto, o fim da ditadura foi marcado pela campanha da Anistia
ampla, geral e irrestrita aprovada em 1979 que garantiu que a transição política ocorresse sem a responsabilização penal pelas violações de direitos humanos cometidas durante o período. Desde sua aprovação, a lei de anistia é
utilizada e interpretada de forma a impedir a abertura de processos judiciais
contra os responsáveis pelas violações dos direitos humanos e crimes cometidos durante a ditadura.
Para Rodeghero (2014), a anistia
está diretamente relacionada à memória e ao esquecimento. Rui Barbosa já
teorizava sobre esta relação na passagem do século XIX para o XX, pois para o
advogado a anistia era vista como “o véu do eterno esquecimento” capaz de
cicatrizar feridas. A disposição conciliatória manifestada por João Baptista
Figueiredo, em seu discurso de posse, abria a possibilidade de transição para o
regime democrático. Nesse sentido surge à campanha pela anistia vista pelos
militares como uma condição necessária à abertura política, de forma que a
anistia perpetuou as políticas de esquecimento e desmemoria fomentadas durante
a ditadura.
O esquecimento era essencial no processo de abertura. Mas não somente
para os militares. A sociedade queria esquecer. A negação da história, do
conhecimento do passado no presente. A cumplicidade, a omissão, os
compromissos, a colaboração, o apoio. (ROLLEMBERG, 2006, p.88)
A lei de anistia, em vigor hoje,
não é exatamente a mesma que foi promulgada, em diferentes momentos seus
artigos foram modificados ou suprimidos; uma das alterações permitiu, por
exemplo, o pagamento de indenização aos familiares de mortos, desaparecidos e
perseguidos políticos. Ao longo do tempo, existiram diversas iniciativas civis e estatais que
buscaram promover a justiça, entre elas é possível citar: O projeto Brasil
Nunca Mais (1985), projeto Memórias reveladas (2009), a criação das Caravanas
da Anistia (2008), Marcas da Memória (2010) e finalmente a CNV. Tais
iniciativas surgem da cobrança de entidades civis, setores ligados aos direitos
humanos ou de pessoas e famílias diretamente atingidas pela violência e
repressão da ditadura.
Embora tenha ocorrido uma adesão
significativa da sociedade à campanha pela anistia, é importante ressaltar que
apesar de ser considerada um pacto entre os setores da sociedade, não é
possível falar em unanimidade.
[...]Lei de Anistia, aprovada em
agosto de 1979. Para mim, esta lei configurou um pacto de sociedade. O que não significa que
houve unanimidade. Nunca há unanimidade, por mais que um consenso,[2]
reunindo amplos segmentos
sociais, se forme em determinados momentos em distintas sociedades. (Reis,
2010, s/p)
Ainda que a anistia tenha
possibilitado a distensão política e um recomeço político para o país, é
importante ponderar o esquecimento decorrente desse desejo de pacificar a
nação, tido como necessário à redemocratização. Mesmo diante da anistia que
perdoava torturadores e, do esquecimento que objetivava perpetuar a narrativa
dos militares, a historiografia conseguiu avançar e propor outras narrativas e interpretações sobre o período em questão.
Tivemos um primeiro momento
dominado pela memorialística, nos anos 1980. Um segundo, pelos estudos sobre a
“resistência” ao regime, com ênfase sobre a luta armada contra a ditadura, nos
anos 1990. Finalmente, embora estes dois primeiros gêneros continuem sendo explorados,
abriu-se uma fase mais fecunda na primeira década do século 21. As principais
mudanças orientam-se no sentido de compreender melhor as bases sociais e
históricas da ditadura, de pensar a ditadura como um “constructo” social,
embora ela nunca tenha deixado de suscitar oposições. Da mesma forma, tenta-se
superar as “arquiteturas simplificadas”, da luta entre o “bem” e o “mal”,
problematizando-se metamorfoses, ziguezagues, a chamada “zona cinzenta”, na
qual vicejam atitudes de neutralidade, de indiferença, sem falar nas
ambiguidades e nas ambivalências (o pensar-duplo), em que determinados atores
surgem apoiando e criticando, ao mesmo tempo, o regime ditatorial. Nestes
parâmetros, a história faz a crítica de uma certa tradição “militante” para
realizar plenamente seu ofício: compreender, explicar, interpretar. (REIS, 2014
s/p)
Segundo
Napolitano (2014), a memória predominante sobre o regime é fundamentalmente
liberal e tende a valorizar a estabilidade institucional e financeira.
Entretanto, isso não significa a inexistência de outras
memórias e narrativas que lutam para se afirmar e se legitimar. É nesse
contexto que, segundo Pereira (2015), ocorrem as “batalhas de memória”, pois
embora o fato encontre-se finalizado no espaço-tempo, existem múltiplos usos e
suas interpretações continuam ocorrendo no tempo presente de acordo com as
demandas do contexto e dos agentes históricos. Estes embates têm como objetivo a seleção de
uma memória “hegemônica” tida como referencial capaz de dar coesão à sociedade.
Nesse caso, é um referencial a ideia de Maurice Halbwachs (1997),
segundo qual a memória coletiva não
seria uma imposição e sim um elemento essencial, que dá coesão à sociedade:
“longe de ver nessa memória coletiva uma imposição, uma forma específica de
dominação ou violência simbólica, acentua [Halbwachs] as funções positivas
desempenhadas pela memória comum, a saber, de reforçar a coesão social, não
pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza de
‘comunidade afetiva’” (Pollak, 1989, p.3). Essa abordagem se opõe a outra que
vê a história oral como a possibilidade de reabilita a periferia e a
marginalidade, acentuando “o caráter destruidor, uniformizador e opressor da
memória coletiva nacional” (POLLAK, 1989, p.4).
O uso do termo batalha deixa claro os embates contínuos, bem como a resistência
das memórias “marginalizadas” que buscam a revisão ou a negação da memória
hegemônica. Ainda que essas batalhas tenham sido travadas ao longo dos anos, de
acordo com Pereira (2015), a instituição da CNV reaqueceu essa batalha
principalmente nas plataformas digitais, nas quais são utilizados os termos negacionismo e/ou revisionismo que buscam reafirmar a narrativa oficial sobre a ditadura militar negando o conhecimento produzido até então.
Bibliografia:
BAUER, Caroline Silveira. Quanta verdade o Brasil
suportará? Uma análise das políticas de memória e de reparação implementadas no
Brasil em relação à ditadura civil-militar. Revista de história da UFES. nº.
32, 2014. Disponível em: <http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/8371/5948>
acesso em jan de 2018.
BAUER, Caroline Silveira. Os muitos tempos da Comissão
Nacional da Verdade: distintas temporalidades do debate legislativo sobre a criação
da comissão. In: XXVIII Simpósio Nacional de História. 2015. Florianópolis, SC.
Disponível em : <http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1426718747_ARQUIVO_textoanpuh.pdf>
acesso jan 2018.
MONTOLLI, Carolina. História,
Discurso e Memória: Crimes da Ditadura Militar na Perspectiva Internacional, Editora
D’plácido, Belo Horizonte, 2013.
NAPOLITANO, Marcos. 1964:
História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo, Editora Contexto, 2014.
PEREIRA, Mateus Henrique de
Faria; Andreza C. I. Os sentidos do golpe de 1964 nos livros didáticos de
História (1970-2000): entre continuidades e descontinuidades. Tempo. Revista do
Departamento de História da UFF, v. 30, p. 197-220, 2011.
PEREIRA, Mateus Henrique de
Faria. A História do Tempo Presente: do futurismo ao presentismo?. Humanidades
(Brasília), v. 58, p. 56-65, 2011.
PEREIRA, Mateus Henrique de
Faria. Nova direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade
(2012-2014). In Varia História, Belo Horizonte, vol. 31, n.57. p.863-902,
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<http://www.scielo.br/pdf/vh/v31n57/0104-8775-vh-31-57-0863.pdf> Acesso
em 19 de abril de 2015.
PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, V. Reconfigurações do Tempo Histórico:
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Universidade Federal de Minas Gerais, v. 1, p. 270-297, 2016.
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3.
1989.
Para saber mais: Martins, Jessica Machado, ‘Educar para o nunca mais’ : Sequência
didática, memória e esquecimento sobre a
ditadura militar nos livros didáticos de história (2011-2017). Belo Horizonte, 2018. Dissertação - (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de
Educação.
[1] ‘Ideologia de reconciliação’ foi um
termo cunhado pelo historiador catalão Ricard Vinyes para fazer referência às
ações estatais de equiparação ética e da impunidade equitativa em relação a
crimes cometidos em conjunturas autoritárias, como a ditadura civil-militar
brasileira. (BAUER, 2014, p.151)
[2] O
conceito de consenso, na acepção com que o emprego, designa a
formação de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade,
explícito ou implícito, compreendendo o apoio ativo, a simpatia acolhedora, a
neutralidade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação de absoluta
impotência. São matizes bem diferenciados e, segundo as circunstâncias, podem
evoluir em direções distintas, mas concorrem todos, em dado momento, para a
sustentação de um regime político, ou para o enfraquecimento de uma eventual
luta contra o mesmo. A repressão e, em particular, a ação da polícia política
podem induzir ao consenso, ou fortalecê-lo, mas nunca devem ser compreendidas
como decisivas para a sua formação.
É muito importante manter "viva" e transparente a memória sobre a ditadura militar, em todos os seus aspectos. A política brasileira vive um momento obscuro, no qual muitas pessoas se esqueceram das atrocidades cometidas durante esse período histórico! A história deve ser utilizada para que não cometamos os mesmos erros novamente.
ResponderExcluirCom certeza, Daiane! Muitos entendem que a história é algo preso ao passado, mas quando prestamos atenção, a história fala muito mais é sobre nosso presente. Pois, precisamos conhecer o que aconteceu em tempo anteriores para que possamos agir de forma crítica e consciente no presente. No caso da ditadura militar e de outros períodos traumáticos da nossa história, é fundamental "lembrar para não deixar que seja esquecido", certo?
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